Guida Marques Pinto | C9 | Dedo Design | Xangai, China
Se não fosse o Contacto, não teria este parceiro de vida. Não teríamos os nossos três filhos. Não teria o do meio, esta madrinha, a mais nova, este padrinho. Não teria percebido, na China, que o que eu gostava mesmo não era só de Arquitectura - era de resolver pepinos.
Na verdade, tudo começou antes da viagem, com o Professor Pinto dos Santos. Foi quando ele se zangou comigo que tudo começou. Depois de saber para onde ia - e que afinal não era Luanda, como eu tinha a certeza de que seria - fui ter com ele, entusiasmadíssima:
"O Professor nem sabe a sorte que tive. Saiu-me Xangai!"
Eu, mínima. Ele, enorme. Eu, infantil. Ele, sábio. De indicador em riste, respondeu:
"Tu tens de saber distinguir entre sorte e fortuna. Se estiveres sentada no teu quintal e, sem pensar, puseres a mão no chão e sair petróleo, tiveste sorte. Mas se estiveres nesse quintal, e na sequência de cavares batatas sair petróleo, tiveste fortuna. Tiveste foi fortuna, ao sair-te Xangai. Agora vai-te embora."
Caramba, se antes o admirava, agora queria beijar-lhe a testa. Mas não tive coragem, e saí.
Chegámos a Xangai em Fevereiro. Eu e o futuro padrinho. Credo, um frio de morte. Um cheiro estranho a ovos cozidos por todo o lado. Toda a gente nos oferecia água quente e queria tirar fotos connosco. E quando tiravam, as crianças gostavam de me cheirar o pescoço. Cruzamentos em que ficas à espera que alguém se estampe com tanto caos, mas nunca ninguém se magoa. A cidade era uma dança alucinante.
Habituámo-nos.
Muito cedo tivemos de começar a confiar em nós, entre nós e nos nossos que, entretanto, se juntaram. Não havia mais ninguém como nós, apesar dos 17 milhões. Fomos família, claro. Como não? Uma pessoa não faz ideia do que é estar do outro lado do mundo, com tudo a acontecer pela primeira vez.
Por exemplo, foi a primeira vez que explorei um mundo paralelo, ao andar por discotecas que eram casas clandestinas, em que vi jogar de tudo, e onde íamos parar porque adorávamos perder-nos em becos. A primeira vez que soube o que era gerir entre culturas, eu que no início não sabia mandarim e ia para a obra com um lápis e o Google Translate num desktop. A primeira vez que compreendi a segurança que o trabalho de repetição pode dar, especialmente a quem cresce a memorizar milhares de caracteres, até à perfeição. A primeira vez que percebi que não podia recusar um prato "a la Indiana Jones", porque na China uma refeição partilhada é um contracto assinado. Em que aprendi a cultura milenar de respeitar o tempo, e honrar continuamente a sabedoria dos mais velhos.
A emoção de ver os Stones no seu primeiro concerto na China, quase em cima do Keith no "this place is empty ohhh so empty without you". Mas nem foi por mim - foi pelo público, em transe, quando quase abracei um estranho que chorava. Era a primeira vez que sentiam aquela eletricidade concentrada, daquilo que, até então, só conseguiam ver às escondidas. Foi também o tempo dos blogs, que só conseguimos publicar e ler via Anonymouse. O tempo em que a polícia nos batia à porta para entrevistar aquele amigo que tinha chegado agora do estrangeiro.
Foram tantas viagens. Ver pessoas a percorrer quilómetros só para abraçar uma árvore numa montanha. Tantos erros que cometi. Tanto incha, desincha e passa. Tanto, que aprendi a (re)aprender. Aprendi sobre empatia. Sobre como é possível fazer o mesmo de sempre, mas de forma completamente diferente. Aprendi o que ganhamos com o acaso - mais do que com a segurança de se saber ao que se vai. Fiquei viciada nisso desde então.
Quando o tempo acabou, a minha directora italiana virou-se para mim e disse: "Congrats. You're a tough cookie". Tinha sobrevivido, e não queria voltar para Portugal. Ninguém queria voltar. Fomos viajar pelo Sudoeste Asiático. Até isso era um privilégio: estar perto de tudo o que normalmente está longe. Mas voltámos. Quer dizer, espalhámo-nos. Eu fui para Londres, e a vida boa acabou.
Mas não tenho saudades de Xangai. Nas duas vezes que lá voltei, o que tínhamos vivido tinha desaparecido: quarteirões inteiros, os nossos amigos estrangeiros, até uma certa inocência local. Só um de nós ficou. E ainda lá está. O valente.
E quando vem, vivemos todos um bocadinho do que foi. Porque o que o Contacto me deu não foi Xangai. Foram as minhas pessoas. As que já cá estavam nessa altura, e as que dele nasceram."
Se não fosse o Contacto, não teria este parceiro de vida. Não teríamos os nossos três filhos. Não teria o do meio, esta madrinha, a mais nova, este padrinho. Não teria percebido, na China, que o que eu gostava mesmo não era só de Arquitectura - era de resolver pepinos.
Na verdade, tudo começou antes da viagem, com o Professor Pinto dos Santos. Foi quando ele se zangou comigo que tudo começou. Depois de saber para onde ia - e que afinal não era Luanda, como eu tinha a certeza de que seria - fui ter com ele, entusiasmadíssima:
"O Professor nem sabe a sorte que tive. Saiu-me Xangai!"
Eu, mínima. Ele, enorme. Eu, infantil. Ele, sábio. De indicador em riste, respondeu:
"Tu tens de saber distinguir entre sorte e fortuna. Se estiveres sentada no teu quintal e, sem pensar, puseres a mão no chão e sair petróleo, tiveste sorte. Mas se estiveres nesse quintal, e na sequência de cavares batatas sair petróleo, tiveste fortuna. Tiveste foi fortuna, ao sair-te Xangai. Agora vai-te embora."
Caramba, se antes o admirava, agora queria beijar-lhe a testa. Mas não tive coragem, e saí.
Chegámos a Xangai em Fevereiro. Eu e o futuro padrinho. Credo, um frio de morte. Um cheiro estranho a ovos cozidos por todo o lado. Toda a gente nos oferecia água quente e queria tirar fotos connosco. E quando tiravam, as crianças gostavam de me cheirar o pescoço. Cruzamentos em que ficas à espera que alguém se estampe com tanto caos, mas nunca ninguém se magoa. A cidade era uma dança alucinante.
Habituámo-nos.
Muito cedo tivemos de começar a confiar em nós, entre nós e nos nossos que, entretanto, se juntaram. Não havia mais ninguém como nós, apesar dos 17 milhões. Fomos família, claro. Como não? Uma pessoa não faz ideia do que é estar do outro lado do mundo, com tudo a acontecer pela primeira vez.
Por exemplo, foi a primeira vez que explorei um mundo paralelo, ao andar por discotecas que eram casas clandestinas, em que vi jogar de tudo, e onde íamos parar porque adorávamos perder-nos em becos. A primeira vez que soube o que era gerir entre culturas, eu que no início não sabia mandarim e ia para a obra com um lápis e o Google Translate num desktop. A primeira vez que compreendi a segurança que o trabalho de repetição pode dar, especialmente a quem cresce a memorizar milhares de caracteres, até à perfeição. A primeira vez que percebi que não podia recusar um prato "a la Indiana Jones", porque na China uma refeição partilhada é um contracto assinado. Em que aprendi a cultura milenar de respeitar o tempo, e honrar continuamente a sabedoria dos mais velhos.
A emoção de ver os Stones no seu primeiro concerto na China, quase em cima do Keith no "this place is empty ohhh so empty without you". Mas nem foi por mim - foi pelo público, em transe, quando quase abracei um estranho que chorava. Era a primeira vez que sentiam aquela eletricidade concentrada, daquilo que, até então, só conseguiam ver às escondidas. Foi também o tempo dos blogs, que só conseguimos publicar e ler via Anonymouse. O tempo em que a polícia nos batia à porta para entrevistar aquele amigo que tinha chegado agora do estrangeiro.
Foram tantas viagens. Ver pessoas a percorrer quilómetros só para abraçar uma árvore numa montanha. Tantos erros que cometi. Tanto incha, desincha e passa. Tanto, que aprendi a (re)aprender. Aprendi sobre empatia. Sobre como é possível fazer o mesmo de sempre, mas de forma completamente diferente. Aprendi o que ganhamos com o acaso - mais do que com a segurança de se saber ao que se vai. Fiquei viciada nisso desde então.
Quando o tempo acabou, a minha directora italiana virou-se para mim e disse: "Congrats. You're a tough cookie". Tinha sobrevivido, e não queria voltar para Portugal. Ninguém queria voltar. Fomos viajar pelo Sudoeste Asiático. Até isso era um privilégio: estar perto de tudo o que normalmente está longe. Mas voltámos. Quer dizer, espalhámo-nos. Eu fui para Londres, e a vida boa acabou.
Mas não tenho saudades de Xangai. Nas duas vezes que lá voltei, o que tínhamos vivido tinha desaparecido: quarteirões inteiros, os nossos amigos estrangeiros, até uma certa inocência local. Só um de nós ficou. E ainda lá está. O valente.
E quando vem, vivemos todos um bocadinho do que foi. Porque o que o Contacto me deu não foi Xangai. Foram as minhas pessoas. As que já cá estavam nessa altura, e as que dele nasceram."