O Japão está na moda e, mais do que aderir a uma febre turística, é preciso paciência para entender o que parece não ter tradução. Estivemos em Osaka, que por estes dias recebe uma Exposição Mundial, e encontrámos um padre português a viver no Japão há quase 30 anos, um japonês que toca fado e outras personagens icónicas.
A rua estreita está vazia e sossegada. Passam poucos minutos das 11h de uma manhã de quarta-feira. Chove pouco mas insistentemente. As casas, pequeninas e de apenas um andar, têm as portas abertas. Lá dentro, o cenário repete-se: duas mulheres sentadas no chão. Uma, mais velha, a outra, mais jovem, bonita, pouco vestida. Na parede lateral da entrada, um espelho e, nele, os rostos atentos e irritados observam as duas únicas mulheres estrangeiras que por ali se aventuram. Bem-vindos, estamos em Tobita Sinchi (飛田新地), também conhecido como Tobita Yūkaku (飛田遊廓), o maior distrito de prostituição de Osaka.
A meia hora de automóvel de Nishinari-ku, perto do castelo que simboliza Osaka a terceira ou segunda maior cidade japonesa, dependendo das fontes estatísticas , tudo muda. Naquela zona bastante central está localizada uma catedral católica, em que o pároco é um português. Nuno Lima, 51 anos, da Ordem dos Missionários da Boa Nova, recebe- -nos com um grande sorriso. A igreja construída na década de 60 é grande, com direito a um órgão e uma enorme imagem de Maria Gloriosa e seu bebé Jesus, ambos com traços fisionómicos e roupas ni- pónicas, algo bastante incomum no Japão, garante o sacerdote. Aos domingos reúne-se ali alguma da comunidade católica, que, em todo o país não representa mais de 0,3% da população total de 125 milhões de habitantes. Na segunda metade do século XVI os cristãos chegaram a ser 300 mil, mas hoje constituem um grupo reduzido de fiéis que, no entanto, vem crescendo com os imigrantes, de tal forma que, aos domingos, na catedral são celebradas três missas, em japonês, inglês e coreano.
"Cheguei ao Japão há 27 anos e não conheço nenhum outro português que viva em Osaka. Se houve algo que penso ter aprendido com os japoneses foi a escutar, até porque a gramática japonesa nos obriga a ouvir as frases até ao fim para perceber o que significam, já que os verbos estão no final e podem vir na positiva ou na negativa", explica Nuno Lima. O padre aproveita para deixar outro alerta sobre a natureza dos japoneses: "Ao contrário da Europa, baseada na cultura de sequeiro do trigo, o Japão vive do arroz, onde se depende do acesso à água e da boa relação com os vizinhos, com quem se tem de partilhar o curso dos rios."
Em Lisboa, antes de partirmos, outro sacerdote da Ordem da Boa Nova recordou a primeira vez que chegou ao Japão, há 27 anos, também à Arquidiocese de Osaka, para trabalhar o diálogo inter-religioso. Adelino Ascenso é o atual presidente da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal, mas durante vários anos viveu no Japão, onde para aprender o idioma, tinha aulas quatro horas por dia, cinco dias por semana, sem contar os inúmeros trabalhos de casa. Um esforço árduo: "Dizem que até se aprender japonês, é preciso, primeiro, esquecê-lo sete vezes." Agora sente-se à vontade naquele que é considerado um dos sistemas de escrita mais complexos em uso no mundo moderno, com três tipos de caracteres: hiragana (para palavras de origem japonesa), katakana (geralmente usado para transliterar termos estrangeiros), e kanji (de origem chinesa, usado na escrita de nomes).
Aprendeu também que "os japoneses são in- trospetivos e funcionam em círculos concêntricos a família, a empresa para que trabalham, o bairro onde vivem , nunca individualmente, mas ligados à comunidade a que pertencem". E que "é muito difícil fazer amizade, mas quando acontece, é para toda a vida". Porém, sublinha, encontra semelhanças com os portugueses: "Ambos os povos são melancólicos e sentimentais." Admirador da capacidade de resistência dos japoneses, o sacerdote explica que durante 250 anos os cristãos foram perseguidos naquele país. Uma história que começou com a chegada de três navegadores portugueses, os primeiros europeus a pisar solo japonês em 1543.
Eram mercadores que seguiam com destino à China, mas que uma tempestade atirou para a ilha de Tanegashima, os Nanban Jin, termo pelo qual os japoneses se referiam aos europeus, numa tradução literal para "bárbaros do sul". Levavam armas de fogo que impressionaram os japoneses e ajudaram à unificação do território, tornando-os um verbete das aulas de história até hoje. Os jesuítas chegaram ao Japão seis anos mais tarde, com São Francisco Xavier, que desembarcou em Kagoshima e iniciou uma intensa atividade missionária, tendo percebido a importância de aprender a língua japonesa, adaptando os ensinamentos cristãos à cultura local e estabelecendo as bases para o cristianismo no Japão. Numa longa história, os cristãos foram expulsos no século XVII, a religião foi vivida em segredo, até que o país se reabrisse ao mundo dois séculos depois.
Desde então, a relação entre Portugal e o Japão tem primado pela cordialidade distante. Atualmente, segundo o embaixador português naquele país, Gilberto Jerónimo, cerca de 800 portugueses vivem no arquipélago nipónico. Para o diplomata, muito há por fazer para aprofundar o relacionamento com a quarta maior economia do mundo. Sobretudo no que respeita à atração dos japoneses mais jovens. "Temos argumentos para o conseguir, mas temos
EXCITAÇÃO Todos os caminhos parecem levar diariamente japoneses e turistas às ruas de Dotonbori, mas à noite, com os néons, a intensidade torna-se palpável de sair da nossa zona de conforto. Temos de redescobrir o Japão", afirma.
Em 2024, as exportações de Portugal para o Japão diminuíram, representando apenas 0,37% do total. A mesma tendência de quebra (-3,9%) foi seguida pelo investimento direto do Japão em Portugal. Em termos turísticos ainda há muito por fazer, com os japoneses a representarem cerca de 0,16% dos visitantes estrangeiros, assim como no intercâmbio académico de estudantes entre os dois países, considerado ainda incipiente.
ORDEM E VIGILÂNCIA
Da catedral, seguimos para uma zona mais residencial, em direção a uma escola pública, com o propósito de assistir a uma aula da cerimónia do chá. Quase a chegar, acompanhados pelo padre Nuno Lima, temos o ímpeto de atravessar a rua com o sinal vermelho para os peões, mas somos travadas pelo sacerdote, que explica: "Podemos estar a ser observados e não convém dar má impressão à partida." No Japão, as relações são marcadas por grande respeito, as vénias repetem-se, acompanhadas de sorrisos de cortesia. Ao chegar, somos recebidos pelo diretor, que nos acompanha à sala, onde nos esperam a senhora Kamo, 71 anos, voluntária e guardiã da tradição, e cerca de uma dezena de jovens raparigas sorridentes, entre os 12 e os 15 anos.
Delicadamente somos convidados a tirar os sapatos e entrar no espaço com chão de tatami (esteira tradicional japonesa feita de palha de arroz entrançada) , cada vez mais raro quer nas casas quer nas escolas. A professora explica que "a cerimónia do chá representa uma das principais dimensões da espiritualidade zen" de forma muito simples, uma filosofia de vida que busca a simplicidade e a paz, através da prática de meditação. Começa por esclarecer o espaço onde estamos, em que se destaca um canto recuado, o tokonoma ffi(DM), onde ninguém deve entrar, e que tem uma pequena caixa preta de laca com incenso, uma planta da época num vaso de junco e um pendão com palavras em japonês que nos incentivam a nos purificarmos e a estar atentos.
A senhora Kamo ensina-nos que a designação correta para o que vamos assistir é "via do chá" (ÍBM), que mais do que uma cerimónia é "um percurso de partilha da hospitalidade do anfitrião e os seus convidados". Conta que, originalmente, os samurais, além de se descalçarem, tinham de deixar as suas espadas à porta, passar por uma entrada baixa, assumindo uma atitude de humildade, e respeitarem pacificamente as regras do encontro. E começa a cerimónia com a oferta de pequenos doces, os kompeitos (^^f-W) que remetem para a palavra portuguesa "confeito" , que equilibram o paladar com o amargo do matcha (tipo de chá verde em pó, finamente moído).
Uma das alunas assume a liderança, identificada com um lenço vermelho guardado na cintura, e com os utensílios tradicionais de bambu, retira a água de um tacho negro, depositado sobre o chão, e derrama-a numa taça, onde, com uma espécie de pequena vassoura, mexe o chá, que será oferecido aos convidados. A bebida verde, intensa e espumosa, é entregue na taça, que tem de ser rodada na mão do convidado, que ingere a bebida em três golos, antes de elogiar o sabor e agradecer ao anfitrião a gentileza. A senhora Kamo acrescenta que, tradicionalmente, a cerimónia poderia durar horas e viria a seguir a uma refeição. E sublinha que a taça que nos foi oferecida é um exemplar de kintsugi (ázfl cí), ou seja, a arte japonesa de reparar uma peça de cerâmica que se partiu e foi colada com pó de ouro, "simbolizando a aceitação das imperfeições como parte da história de um objeto ou pessoa, transformando-as embeleza".
Osaka já foi conhecida como a Manchester do Oriente devido à sua grande indústria têxtil, atualmente, porém, suas principais indústrias são a fabricação de máquinas elétricas e outras, ferro e aço, metais manufaturados e produtos químicos. Célebre pela culinária, recebeu mais de 1,27 milhão de turistas chineses no primeiro trimestre deste ano, mais de 90% do que em 2024. Com 2,8 milhões de habitantes, a cidade assumiu também a liderança no crescimento populacional do Japão pelo segundo ano consecutivo e a sua área metropolitana é considerada a mais diversa, etnicamente, do Japão.
À noite, todos os caminhos parecem levar ao bairro de Dõtonbori. O antigo distrito de teatros e entretenimento de Osaka está sempre lotado de visitantes estrangeiros que vêm fotografar o letreiro de Glico, um homem em pose de vitória numa maratona e que aparece nas embalagens de chocolates, mas é com o escuro da noite que os néons ganham especial brilho. Com ruas de restaurantes e de comércio, não há nem sombra do silêncio que se esperaria encontrar no Japão. E se na exposição de Kansai o mundo parecia resumir-se, ali, em Dõtonbori, o planeta encolhe-se à procura de um prazer ociden- talizado, à moda japonesa.
No fim do dia, de regresso ao hotel, quase à meia- - noite, mais um desafio: mergulhar no banho público, o sento (tSU). Num exercício de humildade e desprendimento, cada utente é convidado literalmente a despir-se de preconceitos e falsos pudores. Ao entrar no espaço reservado às mulheres, tirámos os chinelos e prendemo-los aumamola com um número, depois, na sala a seguir, encontrámos os cacifos
CONFLUÊNCIA Osaka lidera o crescimento populacional no Japão e a sua área metropolitana é considerada a etnicamente mais diversa do país. O padre Nuno Lima, português a viver há 27 anos entre os japoneses também numerados, em que deixámos as roupas. Todas.
Passamos então a um recinto com pouca luz, com dois tanques e uma bancada em frente a espelhos, onde mulheres nuas de várias idades, sentadas em pequenos bancos de plástico, se esfregam minuciosamente. Acabada a purificação, lavam o espaço que utilizaram, deixando-o pronto para a próxima utente, e dirigem-se ao tanque de água quente. Despidas e relaxadas. Ninguém fica a avaliar o corpo da companheira, cada uma parece focada no seu próprio bem- estar. A experiência termina com um mergulho lento no tanque mais pequeno, de água fria.
MISTÉRIO QUE FICA
O Japão é uma nação insular, composta por mais de 6800 ilhas. Território geográfica e socialmente complexo, durante muito tempo fechado ao exterior, periodicamente assolado por intempéries e terramotos, e sacrificado pelo lançamento da bomba atómica, mantém-se misterioso aos estrangeiros.
"O Japão tem culturas urbanas muito diferentes, há muitos japões no Japão. Osaka é mais ousada do que Tóquio, é um terreno mais propício a experi- mentalismos. Já Quioto nunca perdeu a aura de cidade imperial", explica Alexandra Curvelo, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, historiadora de arte e especialista nos biombos Nanban. Há 25 anos chegou pela primeira vez ao Japão e a sua porta de entrada foi Osaka. Não falava japonês e encontrou "um país em que o indivíduo está fundido no coletivo. O que mais admiro e respeito nos japoneses, uma
das qualidades de onde retiram a sua força mas que pode ser também uma fragilidade, quando se transforma em inflexibilidade, é a sua persistência e tenacidade. Viu-se no pós-Segunda Guerra Mundial, no terramoto de Kobe ou em Fukushima, é algo com uma dimensão que temos dificuldade em compreender" , define.
Emociona-se quando fala do Japão, país onde, diz, se "vive com diferentes dimensões do tempo - com a meditação e a suspensão do tempo, com o tempo linear, o cíclico e o do eterno retorno e do espaço (físico e mental) e onde o real e o imaginário se fundem de uma forma muito especial". Conta que na primeira vez que foi ao Japão se comoveu várias vezes na rua por se aperceber "do nível de exigência que pesava sobre cada indivíduo, incluindo as crianças adolescentes, e ao mesmo tempo que observava uma enorme sensibilidade e delicadeza nas relações entre as pessoas. Respeito imenso o Japão e a cultura japonesa, que me ajudaram, e mudaram a forma como vejo o mundo. É uma cultura do pormenor e do detalhe, da imperfeição e da impertinência como beleza, onde espaços como os jardins de pedra (Mresansui, IÉIÍ-I7j<) estão ligados à ideia de incompletude, e onde não somos apenas observadores passivos".
Tradicionalmente, os santuários budistas são "vigiados" por dois leões de bronze (ou serão cães?), os Mõ (f3E), posicionados à entrada dos templos. Um tem a boca aberta enquanto a do outro está fechada. Por séculos, silenciosamente pareceram proferir os sons "a" e "uri", que remetem para o "OM", a sonoridade primordial do universo: alfa e ómega, o começo e o fim. Um sinal da almejada wa (f U), a harmonia que estava inscrita na primeira constituição pré-moderna do Japão, datada de 604 d.C, como nos explicara em Lisboa o padre Adelino Ascenso. "Para os japoneses, a estética está intrinsecamente associada à ética, e o princípio é que a harmonia seja preservada a todo o custo", afirmou o sacerdote.
Em Portugal, a 11 mil quilómetros de Osaka, numa conversa com Guilherme D'Oliveira Martins, foi-nos recordada a experiência de João Bénard da Costa com um jardim de pedra e areia num templo zen no Japão. O diretor da Cinemateca recordou a situação em várias entrevistas: "Um monge budista que estava sentado na varanda do templo, a certa altura, perguntou-me se estava a gostar. 'Cada vez mais, porque quando cheguei não percebi nada e agora já estou aperceber...' Eledisse: 'Já está a perceber?' E eu: Agora, sim.' 'É espantoso', disse ele, 'eu venho para aqui há 40 anos todos os dias e cada vez percebo menos.' Caiu-me uma vergonha e pressenti que ele tinha toda a razão: eu não estava a perceber nada, a não ser o mais superficial...'"
Neste jardins, o observador nunca consegue ver a totalidade das pedras expostas, há sempre uma que lhe escapa, seja qual for o ponto de vista. Há uma incompletude implícita assumida. Mas, para os japoneses, o imperfeito é belo, segundo o conceito de wabi-sabi (fí tfM tf). Também nós, partimos do Japão com o coração cheio e com a sensação de que aprendemos bastante, mas que entendemos muito pouco ou quase nada. Seguimos assumidamente incompletos.
O Expresso (artigo na íntegra) viajou a convite da AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal)
A rua estreita está vazia e sossegada. Passam poucos minutos das 11h de uma manhã de quarta-feira. Chove pouco mas insistentemente. As casas, pequeninas e de apenas um andar, têm as portas abertas. Lá dentro, o cenário repete-se: duas mulheres sentadas no chão. Uma, mais velha, a outra, mais jovem, bonita, pouco vestida. Na parede lateral da entrada, um espelho e, nele, os rostos atentos e irritados observam as duas únicas mulheres estrangeiras que por ali se aventuram. Bem-vindos, estamos em Tobita Sinchi (飛田新地), também conhecido como Tobita Yūkaku (飛田遊廓), o maior distrito de prostituição de Osaka.
A meia hora de automóvel de Nishinari-ku, perto do castelo que simboliza Osaka a terceira ou segunda maior cidade japonesa, dependendo das fontes estatísticas , tudo muda. Naquela zona bastante central está localizada uma catedral católica, em que o pároco é um português. Nuno Lima, 51 anos, da Ordem dos Missionários da Boa Nova, recebe- -nos com um grande sorriso. A igreja construída na década de 60 é grande, com direito a um órgão e uma enorme imagem de Maria Gloriosa e seu bebé Jesus, ambos com traços fisionómicos e roupas ni- pónicas, algo bastante incomum no Japão, garante o sacerdote. Aos domingos reúne-se ali alguma da comunidade católica, que, em todo o país não representa mais de 0,3% da população total de 125 milhões de habitantes. Na segunda metade do século XVI os cristãos chegaram a ser 300 mil, mas hoje constituem um grupo reduzido de fiéis que, no entanto, vem crescendo com os imigrantes, de tal forma que, aos domingos, na catedral são celebradas três missas, em japonês, inglês e coreano.
"Cheguei ao Japão há 27 anos e não conheço nenhum outro português que viva em Osaka. Se houve algo que penso ter aprendido com os japoneses foi a escutar, até porque a gramática japonesa nos obriga a ouvir as frases até ao fim para perceber o que significam, já que os verbos estão no final e podem vir na positiva ou na negativa", explica Nuno Lima. O padre aproveita para deixar outro alerta sobre a natureza dos japoneses: "Ao contrário da Europa, baseada na cultura de sequeiro do trigo, o Japão vive do arroz, onde se depende do acesso à água e da boa relação com os vizinhos, com quem se tem de partilhar o curso dos rios."
Em Lisboa, antes de partirmos, outro sacerdote da Ordem da Boa Nova recordou a primeira vez que chegou ao Japão, há 27 anos, também à Arquidiocese de Osaka, para trabalhar o diálogo inter-religioso. Adelino Ascenso é o atual presidente da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal, mas durante vários anos viveu no Japão, onde para aprender o idioma, tinha aulas quatro horas por dia, cinco dias por semana, sem contar os inúmeros trabalhos de casa. Um esforço árduo: "Dizem que até se aprender japonês, é preciso, primeiro, esquecê-lo sete vezes." Agora sente-se à vontade naquele que é considerado um dos sistemas de escrita mais complexos em uso no mundo moderno, com três tipos de caracteres: hiragana (para palavras de origem japonesa), katakana (geralmente usado para transliterar termos estrangeiros), e kanji (de origem chinesa, usado na escrita de nomes).
Aprendeu também que "os japoneses são in- trospetivos e funcionam em círculos concêntricos a família, a empresa para que trabalham, o bairro onde vivem , nunca individualmente, mas ligados à comunidade a que pertencem". E que "é muito difícil fazer amizade, mas quando acontece, é para toda a vida". Porém, sublinha, encontra semelhanças com os portugueses: "Ambos os povos são melancólicos e sentimentais." Admirador da capacidade de resistência dos japoneses, o sacerdote explica que durante 250 anos os cristãos foram perseguidos naquele país. Uma história que começou com a chegada de três navegadores portugueses, os primeiros europeus a pisar solo japonês em 1543.
Eram mercadores que seguiam com destino à China, mas que uma tempestade atirou para a ilha de Tanegashima, os Nanban Jin, termo pelo qual os japoneses se referiam aos europeus, numa tradução literal para "bárbaros do sul". Levavam armas de fogo que impressionaram os japoneses e ajudaram à unificação do território, tornando-os um verbete das aulas de história até hoje. Os jesuítas chegaram ao Japão seis anos mais tarde, com São Francisco Xavier, que desembarcou em Kagoshima e iniciou uma intensa atividade missionária, tendo percebido a importância de aprender a língua japonesa, adaptando os ensinamentos cristãos à cultura local e estabelecendo as bases para o cristianismo no Japão. Numa longa história, os cristãos foram expulsos no século XVII, a religião foi vivida em segredo, até que o país se reabrisse ao mundo dois séculos depois.
Desde então, a relação entre Portugal e o Japão tem primado pela cordialidade distante. Atualmente, segundo o embaixador português naquele país, Gilberto Jerónimo, cerca de 800 portugueses vivem no arquipélago nipónico. Para o diplomata, muito há por fazer para aprofundar o relacionamento com a quarta maior economia do mundo. Sobretudo no que respeita à atração dos japoneses mais jovens. "Temos argumentos para o conseguir, mas temos
EXCITAÇÃO Todos os caminhos parecem levar diariamente japoneses e turistas às ruas de Dotonbori, mas à noite, com os néons, a intensidade torna-se palpável de sair da nossa zona de conforto. Temos de redescobrir o Japão", afirma.
Em 2024, as exportações de Portugal para o Japão diminuíram, representando apenas 0,37% do total. A mesma tendência de quebra (-3,9%) foi seguida pelo investimento direto do Japão em Portugal. Em termos turísticos ainda há muito por fazer, com os japoneses a representarem cerca de 0,16% dos visitantes estrangeiros, assim como no intercâmbio académico de estudantes entre os dois países, considerado ainda incipiente.
ORDEM E VIGILÂNCIA
Da catedral, seguimos para uma zona mais residencial, em direção a uma escola pública, com o propósito de assistir a uma aula da cerimónia do chá. Quase a chegar, acompanhados pelo padre Nuno Lima, temos o ímpeto de atravessar a rua com o sinal vermelho para os peões, mas somos travadas pelo sacerdote, que explica: "Podemos estar a ser observados e não convém dar má impressão à partida." No Japão, as relações são marcadas por grande respeito, as vénias repetem-se, acompanhadas de sorrisos de cortesia. Ao chegar, somos recebidos pelo diretor, que nos acompanha à sala, onde nos esperam a senhora Kamo, 71 anos, voluntária e guardiã da tradição, e cerca de uma dezena de jovens raparigas sorridentes, entre os 12 e os 15 anos.
Delicadamente somos convidados a tirar os sapatos e entrar no espaço com chão de tatami (esteira tradicional japonesa feita de palha de arroz entrançada) , cada vez mais raro quer nas casas quer nas escolas. A professora explica que "a cerimónia do chá representa uma das principais dimensões da espiritualidade zen" de forma muito simples, uma filosofia de vida que busca a simplicidade e a paz, através da prática de meditação. Começa por esclarecer o espaço onde estamos, em que se destaca um canto recuado, o tokonoma ffi(DM), onde ninguém deve entrar, e que tem uma pequena caixa preta de laca com incenso, uma planta da época num vaso de junco e um pendão com palavras em japonês que nos incentivam a nos purificarmos e a estar atentos.
A senhora Kamo ensina-nos que a designação correta para o que vamos assistir é "via do chá" (ÍBM), que mais do que uma cerimónia é "um percurso de partilha da hospitalidade do anfitrião e os seus convidados". Conta que, originalmente, os samurais, além de se descalçarem, tinham de deixar as suas espadas à porta, passar por uma entrada baixa, assumindo uma atitude de humildade, e respeitarem pacificamente as regras do encontro. E começa a cerimónia com a oferta de pequenos doces, os kompeitos (^^f-W) que remetem para a palavra portuguesa "confeito" , que equilibram o paladar com o amargo do matcha (tipo de chá verde em pó, finamente moído).
Uma das alunas assume a liderança, identificada com um lenço vermelho guardado na cintura, e com os utensílios tradicionais de bambu, retira a água de um tacho negro, depositado sobre o chão, e derrama-a numa taça, onde, com uma espécie de pequena vassoura, mexe o chá, que será oferecido aos convidados. A bebida verde, intensa e espumosa, é entregue na taça, que tem de ser rodada na mão do convidado, que ingere a bebida em três golos, antes de elogiar o sabor e agradecer ao anfitrião a gentileza. A senhora Kamo acrescenta que, tradicionalmente, a cerimónia poderia durar horas e viria a seguir a uma refeição. E sublinha que a taça que nos foi oferecida é um exemplar de kintsugi (ázfl cí), ou seja, a arte japonesa de reparar uma peça de cerâmica que se partiu e foi colada com pó de ouro, "simbolizando a aceitação das imperfeições como parte da história de um objeto ou pessoa, transformando-as embeleza".
Osaka já foi conhecida como a Manchester do Oriente devido à sua grande indústria têxtil, atualmente, porém, suas principais indústrias são a fabricação de máquinas elétricas e outras, ferro e aço, metais manufaturados e produtos químicos. Célebre pela culinária, recebeu mais de 1,27 milhão de turistas chineses no primeiro trimestre deste ano, mais de 90% do que em 2024. Com 2,8 milhões de habitantes, a cidade assumiu também a liderança no crescimento populacional do Japão pelo segundo ano consecutivo e a sua área metropolitana é considerada a mais diversa, etnicamente, do Japão.
À noite, todos os caminhos parecem levar ao bairro de Dõtonbori. O antigo distrito de teatros e entretenimento de Osaka está sempre lotado de visitantes estrangeiros que vêm fotografar o letreiro de Glico, um homem em pose de vitória numa maratona e que aparece nas embalagens de chocolates, mas é com o escuro da noite que os néons ganham especial brilho. Com ruas de restaurantes e de comércio, não há nem sombra do silêncio que se esperaria encontrar no Japão. E se na exposição de Kansai o mundo parecia resumir-se, ali, em Dõtonbori, o planeta encolhe-se à procura de um prazer ociden- talizado, à moda japonesa.
No fim do dia, de regresso ao hotel, quase à meia- - noite, mais um desafio: mergulhar no banho público, o sento (tSU). Num exercício de humildade e desprendimento, cada utente é convidado literalmente a despir-se de preconceitos e falsos pudores. Ao entrar no espaço reservado às mulheres, tirámos os chinelos e prendemo-los aumamola com um número, depois, na sala a seguir, encontrámos os cacifos
CONFLUÊNCIA Osaka lidera o crescimento populacional no Japão e a sua área metropolitana é considerada a etnicamente mais diversa do país. O padre Nuno Lima, português a viver há 27 anos entre os japoneses também numerados, em que deixámos as roupas. Todas.
Passamos então a um recinto com pouca luz, com dois tanques e uma bancada em frente a espelhos, onde mulheres nuas de várias idades, sentadas em pequenos bancos de plástico, se esfregam minuciosamente. Acabada a purificação, lavam o espaço que utilizaram, deixando-o pronto para a próxima utente, e dirigem-se ao tanque de água quente. Despidas e relaxadas. Ninguém fica a avaliar o corpo da companheira, cada uma parece focada no seu próprio bem- estar. A experiência termina com um mergulho lento no tanque mais pequeno, de água fria.
MISTÉRIO QUE FICA
O Japão é uma nação insular, composta por mais de 6800 ilhas. Território geográfica e socialmente complexo, durante muito tempo fechado ao exterior, periodicamente assolado por intempéries e terramotos, e sacrificado pelo lançamento da bomba atómica, mantém-se misterioso aos estrangeiros.
"O Japão tem culturas urbanas muito diferentes, há muitos japões no Japão. Osaka é mais ousada do que Tóquio, é um terreno mais propício a experi- mentalismos. Já Quioto nunca perdeu a aura de cidade imperial", explica Alexandra Curvelo, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, historiadora de arte e especialista nos biombos Nanban. Há 25 anos chegou pela primeira vez ao Japão e a sua porta de entrada foi Osaka. Não falava japonês e encontrou "um país em que o indivíduo está fundido no coletivo. O que mais admiro e respeito nos japoneses, uma
das qualidades de onde retiram a sua força mas que pode ser também uma fragilidade, quando se transforma em inflexibilidade, é a sua persistência e tenacidade. Viu-se no pós-Segunda Guerra Mundial, no terramoto de Kobe ou em Fukushima, é algo com uma dimensão que temos dificuldade em compreender" , define.
Emociona-se quando fala do Japão, país onde, diz, se "vive com diferentes dimensões do tempo - com a meditação e a suspensão do tempo, com o tempo linear, o cíclico e o do eterno retorno e do espaço (físico e mental) e onde o real e o imaginário se fundem de uma forma muito especial". Conta que na primeira vez que foi ao Japão se comoveu várias vezes na rua por se aperceber "do nível de exigência que pesava sobre cada indivíduo, incluindo as crianças adolescentes, e ao mesmo tempo que observava uma enorme sensibilidade e delicadeza nas relações entre as pessoas. Respeito imenso o Japão e a cultura japonesa, que me ajudaram, e mudaram a forma como vejo o mundo. É uma cultura do pormenor e do detalhe, da imperfeição e da impertinência como beleza, onde espaços como os jardins de pedra (Mresansui, IÉIÍ-I7j<) estão ligados à ideia de incompletude, e onde não somos apenas observadores passivos".
Tradicionalmente, os santuários budistas são "vigiados" por dois leões de bronze (ou serão cães?), os Mõ (f3E), posicionados à entrada dos templos. Um tem a boca aberta enquanto a do outro está fechada. Por séculos, silenciosamente pareceram proferir os sons "a" e "uri", que remetem para o "OM", a sonoridade primordial do universo: alfa e ómega, o começo e o fim. Um sinal da almejada wa (f U), a harmonia que estava inscrita na primeira constituição pré-moderna do Japão, datada de 604 d.C, como nos explicara em Lisboa o padre Adelino Ascenso. "Para os japoneses, a estética está intrinsecamente associada à ética, e o princípio é que a harmonia seja preservada a todo o custo", afirmou o sacerdote.
Em Portugal, a 11 mil quilómetros de Osaka, numa conversa com Guilherme D'Oliveira Martins, foi-nos recordada a experiência de João Bénard da Costa com um jardim de pedra e areia num templo zen no Japão. O diretor da Cinemateca recordou a situação em várias entrevistas: "Um monge budista que estava sentado na varanda do templo, a certa altura, perguntou-me se estava a gostar. 'Cada vez mais, porque quando cheguei não percebi nada e agora já estou aperceber...' Eledisse: 'Já está a perceber?' E eu: Agora, sim.' 'É espantoso', disse ele, 'eu venho para aqui há 40 anos todos os dias e cada vez percebo menos.' Caiu-me uma vergonha e pressenti que ele tinha toda a razão: eu não estava a perceber nada, a não ser o mais superficial...'"
Neste jardins, o observador nunca consegue ver a totalidade das pedras expostas, há sempre uma que lhe escapa, seja qual for o ponto de vista. Há uma incompletude implícita assumida. Mas, para os japoneses, o imperfeito é belo, segundo o conceito de wabi-sabi (fí tfM tf). Também nós, partimos do Japão com o coração cheio e com a sensação de que aprendemos bastante, mas que entendemos muito pouco ou quase nada. Seguimos assumidamente incompletos.
O Expresso (artigo na íntegra) viajou a convite da AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal)