Analistas e economistas antecipam "impacto limitado" na Zona Euro. Dívida e bolsa de Paris estão sob pressão. Receios levam ainda mais investidores a apostar nos Estados Unidos.
Crise política em França com impacto limitado na Zona Euro
O Governo de Michel Barnier dramatizou a dimensão do impacto nacional e europeu de uma crise política interna, mas os analistas esperam que pouco mude no bloco da moeda única. Executivo está por um fio. A dramatização foi levada ao limite nos últimos dias em França, com vários membros do Governo de Michel Barnier a alertarem para os riscos de uma crise política As repercussões seriam internas, mas acabariam por contaminar o resto da Zona Euro.
"Se o Governo cair por causa do orçamento, haverá imediatamente uma crise financeira", avisou o ministro do Interior, Bruno Retailleau, há duas semanas em entrevista à rádio Europe 1. "Não pensem que a França está protegida", frisou. Apesar dos alertas, o Executivo de Barnier - que moldou a imagem de tecnocrata das instituições europeias com as negociações do Brexit - está por um fio e é quase certo que não sobrevive às moções de censura da direita e da esquerda que serão apresentadas na Assembleia Nacional.
O que significa para os países da moeda única uma crise desta dimensão na segunda maior economia do euro, sem orçamento do Estado? Os analistas parecem, para já pouco preocupados com os impactos. "O impacto na Zona Euro deverá ser mínimo", resume ao Negócios Daniel Kral, da Oxford Económica O economista explica este otimismo com dois argumentos: por um lado, as "questões orçamentais são idiossincráticas para a França e não afetam os fundamentos de outros Estados-membros".
Com efeito, nos últimos 14 anos, entre 2010 e 2023, o país só em dois anos - 2018 e 2019 - conseguiu cumprir as regras dos tratados europeus que limitam o défice a 3% do produto interno bruto (PIB), com um saldo de -2,3% e -2,4%, respetivamente. Por outro lado, e apesar de "o panorama geral ser de incerteza em torno das previsões orçamentais, ninguém (mercados e Comissão Europeia) esperava que a França se mantivesse fiel ao ambicioso esforço de consolidação que Barnier apresentou em outubro, pelo que a maior parte desta situação já está calculada".
Em termos orçamentais, mesmo sem contas públicas aprovadas, o pais não corre o risco de uma paralisia como no caso dos EUA, em que se verifica um "shutdown" dos serviços administrativos e em que tudo pára. "Se o Governo for derrubado e não for aprovado um orçamento, o mais provável é que os partidos cheguem a acordo sobre os limites nominais da despesa Isto significa cortes em termos reais, ou seja, austeridade moderada, e eleições em julho (o mais cedo possível)", antecipa Daniel Kral.
A "incorporação" que mercados e investidores já tinham antes da crise de segunda-feira foi visível na avaliação da S&P, na sexta-feira. A agência manteve o rating do país com perspetiva "estável".
Uma moção a dobrar
Em todo o caso, uma crise política surge num dos piores cenários possíveis, sobretudo com contas públicas frágeis. O défice deverá superar este ano os 6% do PIB e manter-se acima dos 5% nos dois anos seguintes. Por outro lado, a dívida pública deverá continuar a amontoar-se, atingindo os 117% do produto em 2026, afastando-se da tendência generalizada do euro.
A economia também não parece ajudar. As previsões da Comissão Europeia, que permitem comparação com outras geografias da Zona Euro, apontam para um crescimento dececionante. Para este ano, deverá registar uma expansão anual de 1,1%, recuando para 0,8% em 2025, para chegar a 1,4% em 2026. Por comparação, Espanha, a quarta maior economia do bloco, atrás de Itália, deverá crescer 3% este ano, 2,3% no próximo e 2,1% em 2026.
O cenário não é, portanto, o melhor. E a crise que se aproxima e que deverá ser confirmada esta terça-feira não facilita a gestão de um orçamento já de si fragilizado.
A esquerda e a extrema-direita uniram-se e vão apresentar moções de censura Se a iniciativa da União Nacional, de Marine Le Pen, está condenada a ser chumbada, a da Nova Frente Nacional - uma irmanação das esquerdas - tem caminho aberto para passar depois de a direita ter indicado a viabilização. As duas moções vão ser objeto de discussão conjunta na quarta-feira ao final do dia ou na quinta de manhã Ainda são esperadas negociações nas próximas 48 horas.
OS NÚMEROS
França está mergulhada numa crise orçamental que pode agravar-se
Com um crescimento dececionante, um défice público que dobra o limite permitido pelas regras europeias e uma dívida em crescendo, o país prepara-se para entrar numa nova crise política.
CRESCIMENTO DECECIONANTE
Evolução do PIB real, em percentagem
O crescimento da economia francesa tem sido modesto. A segunda maior economia europeia só em 2026 deverá regressar aos níveis pré-crise pandémica, que rondava em média os 1,4%.
QUASE SEMPRE A VIOLAR AS REGRAS
Saldo orçamental, em percentagem do PIB
Na última década, a França apenas conseguiu duas vezes ficar abaixo do limite de défice de 3%, determinado pelas regras europeias. Em média entre 2010 e 2023, o saldo tem registado uma média de 4%. Este ano deverá ficar acima dos 6% do PIB.
DIVIDA PÚBLICA EM CRESCENDO
Dívida pública de França e Portugal, em percentagem do PIB
O endividamento público de França está bem acima dos limites dos tratados europeus (60%) e deverá continuar a acumular nos próximos anos, contrariando a trajetória generalizada da Zona Euro.
Fonte: Eurostat e previsões da Comissão Europeia
Tome nota
O que se segue com a queda do Governo francês?
A moção de censura da esquerda deverá ser aprovada no Parlamento com o apoio da direita radical. Isso implica nomeação de novo primeiro-ministro por parte de Emmanuel Macron.
O QUE ACONTECE COM AS MOÇÕES DE CENSURA?
Depois de invocado o artigo 49.3, o Parlamento francês tem agora 48 horas para apresentar uma moção de censura ao Governo de Michel Barnier. A esquerda da Nova Frente Popular já anunciou que irá avançar com uma moção nesse sentido, devendo contar com o apoio da extrema-direita de Marine Le Pen, que também apresentará uma iniciativa nesse sentido. As moções deverão ser votadas até quinta-feira e, caso sejam aprovadas, levará à queda do Executivo de Michel Barnier, que tomou posse em setembro. Isso significa que o conservador pode vir a tornar-se o primeiro-ministro com o Governo mais curto de sempre da história de França.
UM NOVO GOVERNO?
Se a moção de censura for aprovada, como tudo indica, todo o Governo cai e fica demissionário. O Presidente Emmanuel Macron será obrigado a nomear um novo primeiro-ministro para Matignon que terá de aguentar os destinos do país até que sejam realizadas novas eleições o que deverá acontecer até ao verão do próximo ano.
E O PRESIDENTE MACRON?
A bola está agora do lado do Eliseu. O Presidente Emmanuel Macron, cujo mandato termina em 2027 pode, de facto, nomear um novo primeiro-ministro, com novos ministros, mas a escolha de Michel Barnier, de centro-direita, demorou semanas e não foi um nome consensual. A Assembleia Nacional - semelhante ao Parlamento português - está dividida em três grandes blocos: os apoiantes de Macron, a extrema-direita União Nacional e a coligação de esquerda que inclui também os extremos. Encontrar um nome que agrade a todos deverá mostrar-se mais difícil. Em todo o caso, Barnier poderá manter-se como primeiro-ministro durante várias semanas enquanto decorrem negociações. No limite, Macron também pode atirar a toalha ao chão e demitir-se, provocando eleições presidenciais antecipadas.
O QUE ACONTECE À PROPOSTA DE ORÇAMENTO?
O texto fica sem efeito. Nesse caso, a França não tem orçamento e o Governo fica em gestão, com poderes limitados. Ou seja, a partir de 1 de janeiro, não autoridade legal para aumentar impostos ou subir o endividamento. Em teoria, poder-se-ia prever a formação de um novo Governo, a elaboração e a apresentação de uma nova proposta de lei orçamental até ao final do ano, mas é um cenário considerado irrealista.
TEREMOS UMA CRISE SEMELHANTE À GRÉCIA?
Tal não é esperado. A liquidez da dívida pública francesa em nada se compara à da Grécia nos anos de 2010. Mesmo assim, esta crise chega no pior momento para o país: o défice deverá este ano fixar-se acima dos 6% do PIB e a dívida continua a acumular-se seguindo uma trajetória oposta à generalidade dos países, sobretudo no sul da Europa. Mesmo assim, a agência S&P manteve o rating do país com perspetiva "estável", não esperando grandes sobressaltos mesmo sem orçamento do Estado para 2025.
Receios de nova crise desviam investidores para os EUA
Com uma pré-anunciada queda do Governo, a dívida e a bolsa de França voltam a estar sob pressão. Num ano que está a ser mais favorável para os EUA do que para a Europa, a crise da segunda maior economia da Zona Euro deverá repelir ainda mais.
Numa crise política que dura há seis meses, França passou a ser vista pelos mercados financeiros como mais arriscada do que Espanha, Portugal e até a Grécia - o que tem pesado e deverá continuar apesar sobre os custos de financiamento do país. Apesar de os analistas afastarem um contágio a toda a Zona Euro, avisam para uma fuga de capitais para os Estados Unidos.
"O Governo francês atravessa problemas na aprovação e, até que se dissipe o risco político atual, acreditamos que o melhor é manter-se à margem da dívida soberana francesa",recomenda a equipa de analistas do Bankinter, numa nota a que o Negócios teve acesso. "O ano está praticamente terminado. Com saldos avultados nos índices americanos (ca.+25%), não tanto na Europa (ca. +6%), seria conveniente uma pausa até que se realizem as medidas de [Donald] Trump, assim como os desenvolvimentos dos governos em França e Alemanha e as suas abordagens sobre a despesa pública".
"Isto poderá levar a reajustar carteiras (mais EUA vs. menos Europa) e adotar um 'esperar e ver' para reduzir riscos para o final do ano", antecipam os analistas do Bankinter, numa altura em que a eleição de Donald Trump para a Casa Branca tem dado um renovado ímpeto a Wall Street, contrastando com as crises políticas deste lado do Atlântico.
A 9 de junho, o Presidente francês, Emmanuel Macron, dissolveu a Assembleia Nacional no rescaldo das eleições europeias, nas quais a União Nacional (RN, na sigla em francês) de Marine Le Pen venceu com 31,5% dos votos - mais do dobro da coligação de Macron. As legislativas resultaram em sucessivas tentativas para formar Governo. O Presidente acabaria por chamar o conservador Michel Barnier a liderar aquele que agora pode ser o Executivo mais curto de sempre no país.
Em causa estão três processos legislativos diferentes que têm de ser aprovados até 1 de janeiro de 2025: o orçamento para a Segurança Social, uma correção do orçamento de 2024 para contabilizar as divergências face ao projeto inicial e o orçamento do governo central para 2025. Com o Parlamento dividido, só é possível ver aprovadas estas leis se a extrema-direita ou toda a esquerda se abstiverem. Barnier decidiu assim recorrer ao artigo 49.3, para se sobrepor à assembleia Os deputados têm, depois disso, 48 horas para apresentar uma moção de censura ao Governo, sendo que a esquerda da Nova Frente Popular vai avançar e deverá contar como apoio da extrema-direita.
Apesar do dia tumultuoso no Parlamento, na bolsa os receios acabaram por ser acalmados. O CAC 40, que chegou a cair mais de 1% durante a sessão, conseguiu inverter a tendência de negociação e fechar com uma valorização residual de 0,02%, com o luxo a compensar as perdas da banca Ainda assim, ficou abaixo do desempenho das principais praças europeias. Desde a apresentação do orçamento, o índice francês perde 4,3% - e cai 11% desde a dissolução do Parlamento.
Na dívida, o efeito foi mais notório. Em contraciclo com o alívio por toda a Zona Euro, os juros das obrigações soberanas francesas a dez anos, maturidade de referência, subiram 2,1 pontos-base para 2,912%. O "spread" face à Alemanha - um importante indicador de risco - alargou oito pontos -base (o mais elevado desde 13 de junho) para 88 pontos-base. Historicamente, o financiamento do Governo francês a 10 anos custa cerca de 50 pontos-base a mais do que o alemão. De acordo com estimativas da Bloomberg, este alargamento do diferencial penaliza o PIB em 0,5%.
'Ao contrário do que aconteceu quando Macron convocou eleições antecipadas em junho, o recente 'sell-off no mercado obrigacionista (subida do 'spread' face à Alemanha) tem estado contido a França Isto faz sentido pois os problemas orçamentais são idiossincráticos a França e não afetam os fundamentais de outros Estados-membros", diz Daniel Kral, economista-chefe da Oxford Economics sobre um risco de contágio. "França está numa posição muito diferente à da Grécia [durante a crise das dívidas soberanas]. Tem um mercado obrigacionista profundo e líquido e a procura em recentes leilões de dívida foi forte. Os mercados exigem simplesmente agora um prémio de risco maior", remata.
Até que se dissipe o risco político atual, acreditamos que o melhor é manter-se à margem da dívida soberana francesa.
Equipa de analistas
Bankinter
88
"SPREAD"
A dívida de França tinha historicamente um "spread" de 50 pontos-base face à Alemanha. O diferencial alargou para 88 pontos-base.
IMPACTO
Mercados refletem receios desde as eleições francesas
A dissolução da Assembleia Nacional francesa após a subida da extrema-direita em França deu o pontapé de saída a um período de incerteza que se tem refletido no sentimento dos investidores.
FRANÇA ULTRAPASSA GRÉCIA
"Yield" das obrigações a 10 anos
Os juros franceses ultrapassaram, na semana passada, os pares da Grécia, enquanto o diferencial face à Alemanha se alarga. A "yield" das obrigações gaulesas a 10 anos fechou ontem próxima de 2,91%, mas mantém-se, ainda assim, abaixo dos níveis atingidos em junho, quando negociou acima de 3,5%.
BOLSA PERDE 11% DESDE JUNHO
Evolução do índice CAC 40, em pontos
A crise política em França agravou-se em junho e, desde então, a bolsa francesa tem vindo a desvalorizar. O índice de referência CAC- -40 acumula uma perda de 11%, sendo que na última sessão conseguiu ficar na linha d'água com as subidas do luxo a compensarem as fortes perdas do setor financeiro.
Fonte: Bloomberg
Empresas portuguesas tremem com ventos de incerteza em Paris
Instabilidade e imprevisibilidade são a receita para um cocktail negativo para o investimento e consumo, e, por arrasto, para a balança comercial.
Com a situação política em França a agravar-se a cada minuto, a economia francesa deverá ressentir-se e Portugal pode sofrer por tabela, temem a Confederação Empresarial de Portugal (CIP) e a Associação Empresarial Portuguesa (AEP).
Desde logo porque França é o segundo destino das exportações portuguesas, sendo ultrapassado apenas por Espanha: em 2023, a economia gaulesa comprou bens no valor de mais de 10 mil milhões de euros às empresas portuguesas, que em troca importaram 7,3 mil milhões. O excedente, favorável a Portugal, alcançou os 2,8 mil milhões. Entre os setores mais representados nas vendas estão os dos veículos e material de transporte (16,6% do total), metais (12,9%) e máquinas e aparelhos (12%).
"Uma quebra da confiança das famílias e empresas em França poderá afetar negativamente a balança comercial", diz o presidente do Conselho de Administração da AEP ao Negócios. Luís Miguel Ribeiro recorda que um aperto de financiamento em França "pode influenciar negativamente uma elevada diversidade de setores, desde a agricultura, a indústria transformadora ou o turismo, entre outros".
Um sentimento que afeta também a diáspora em França, que conta com inúmeros peque - nos negócios: "Os empresários da diáspora já estão a sentir a crise e, além disso, as grandes empresas francesas estão também elas a sentir dificuldades. Em muitas delas trabalham muitos portugueses", manifesta Luís Miguel Ribeiro.
A CIP também vê "motivos para sérias preocupações" perante a possibilidade de um "impasse político de consequências imprevisíveis", escreve fonte oficial da Confederação. "Um cenário provável será uma reação imediata dos mercados, com os investidores a venderem títulos da dívida pública francesa, e um aumento dramático do custo do financiamento dessa dívida", continua a CIP, adivinhando que em caso de urgência, "as instituições europeias não teriam capacidade de responder a uma rutura da segunda maior economia europeia, como fizeram no passado com a Irlanda, Portugal e Grécia". Seria um cenário sombrio: "as consequências alastrariam rapidamente à economia real, fazendo mergulhar a França numa severa crise", o que "afetaria incontornavelmente as empresas portuguesas. A generalidade dos setores industriais portugueses seria afetada", alerta a CIP.
As grandes empresas francesas estão a sentir dificuldades. Em muitas delas trabalham portugueses. Luís Miguel Ribeiro - Presidente da AEP
As instituições europeias não teriam capacidade de responder a uma rutura da segunda maior economia europeia - CIP, Fonte oficial.
Crise política em França com impacto limitado na Zona Euro
O Governo de Michel Barnier dramatizou a dimensão do impacto nacional e europeu de uma crise política interna, mas os analistas esperam que pouco mude no bloco da moeda única. Executivo está por um fio. A dramatização foi levada ao limite nos últimos dias em França, com vários membros do Governo de Michel Barnier a alertarem para os riscos de uma crise política As repercussões seriam internas, mas acabariam por contaminar o resto da Zona Euro.
"Se o Governo cair por causa do orçamento, haverá imediatamente uma crise financeira", avisou o ministro do Interior, Bruno Retailleau, há duas semanas em entrevista à rádio Europe 1. "Não pensem que a França está protegida", frisou. Apesar dos alertas, o Executivo de Barnier - que moldou a imagem de tecnocrata das instituições europeias com as negociações do Brexit - está por um fio e é quase certo que não sobrevive às moções de censura da direita e da esquerda que serão apresentadas na Assembleia Nacional.
O que significa para os países da moeda única uma crise desta dimensão na segunda maior economia do euro, sem orçamento do Estado? Os analistas parecem, para já pouco preocupados com os impactos. "O impacto na Zona Euro deverá ser mínimo", resume ao Negócios Daniel Kral, da Oxford Económica O economista explica este otimismo com dois argumentos: por um lado, as "questões orçamentais são idiossincráticas para a França e não afetam os fundamentos de outros Estados-membros".
Com efeito, nos últimos 14 anos, entre 2010 e 2023, o país só em dois anos - 2018 e 2019 - conseguiu cumprir as regras dos tratados europeus que limitam o défice a 3% do produto interno bruto (PIB), com um saldo de -2,3% e -2,4%, respetivamente. Por outro lado, e apesar de "o panorama geral ser de incerteza em torno das previsões orçamentais, ninguém (mercados e Comissão Europeia) esperava que a França se mantivesse fiel ao ambicioso esforço de consolidação que Barnier apresentou em outubro, pelo que a maior parte desta situação já está calculada".
Em termos orçamentais, mesmo sem contas públicas aprovadas, o pais não corre o risco de uma paralisia como no caso dos EUA, em que se verifica um "shutdown" dos serviços administrativos e em que tudo pára. "Se o Governo for derrubado e não for aprovado um orçamento, o mais provável é que os partidos cheguem a acordo sobre os limites nominais da despesa Isto significa cortes em termos reais, ou seja, austeridade moderada, e eleições em julho (o mais cedo possível)", antecipa Daniel Kral.
A "incorporação" que mercados e investidores já tinham antes da crise de segunda-feira foi visível na avaliação da S&P, na sexta-feira. A agência manteve o rating do país com perspetiva "estável".
Uma moção a dobrar
Em todo o caso, uma crise política surge num dos piores cenários possíveis, sobretudo com contas públicas frágeis. O défice deverá superar este ano os 6% do PIB e manter-se acima dos 5% nos dois anos seguintes. Por outro lado, a dívida pública deverá continuar a amontoar-se, atingindo os 117% do produto em 2026, afastando-se da tendência generalizada do euro.
A economia também não parece ajudar. As previsões da Comissão Europeia, que permitem comparação com outras geografias da Zona Euro, apontam para um crescimento dececionante. Para este ano, deverá registar uma expansão anual de 1,1%, recuando para 0,8% em 2025, para chegar a 1,4% em 2026. Por comparação, Espanha, a quarta maior economia do bloco, atrás de Itália, deverá crescer 3% este ano, 2,3% no próximo e 2,1% em 2026.
O cenário não é, portanto, o melhor. E a crise que se aproxima e que deverá ser confirmada esta terça-feira não facilita a gestão de um orçamento já de si fragilizado.
A esquerda e a extrema-direita uniram-se e vão apresentar moções de censura Se a iniciativa da União Nacional, de Marine Le Pen, está condenada a ser chumbada, a da Nova Frente Nacional - uma irmanação das esquerdas - tem caminho aberto para passar depois de a direita ter indicado a viabilização. As duas moções vão ser objeto de discussão conjunta na quarta-feira ao final do dia ou na quinta de manhã Ainda são esperadas negociações nas próximas 48 horas.
OS NÚMEROS
França está mergulhada numa crise orçamental que pode agravar-se
Com um crescimento dececionante, um défice público que dobra o limite permitido pelas regras europeias e uma dívida em crescendo, o país prepara-se para entrar numa nova crise política.
CRESCIMENTO DECECIONANTE
Evolução do PIB real, em percentagem
O crescimento da economia francesa tem sido modesto. A segunda maior economia europeia só em 2026 deverá regressar aos níveis pré-crise pandémica, que rondava em média os 1,4%.
QUASE SEMPRE A VIOLAR AS REGRAS
Saldo orçamental, em percentagem do PIB
Na última década, a França apenas conseguiu duas vezes ficar abaixo do limite de défice de 3%, determinado pelas regras europeias. Em média entre 2010 e 2023, o saldo tem registado uma média de 4%. Este ano deverá ficar acima dos 6% do PIB.
DIVIDA PÚBLICA EM CRESCENDO
Dívida pública de França e Portugal, em percentagem do PIB
O endividamento público de França está bem acima dos limites dos tratados europeus (60%) e deverá continuar a acumular nos próximos anos, contrariando a trajetória generalizada da Zona Euro.
Fonte: Eurostat e previsões da Comissão Europeia
Tome nota
O que se segue com a queda do Governo francês?
A moção de censura da esquerda deverá ser aprovada no Parlamento com o apoio da direita radical. Isso implica nomeação de novo primeiro-ministro por parte de Emmanuel Macron.
O QUE ACONTECE COM AS MOÇÕES DE CENSURA?
Depois de invocado o artigo 49.3, o Parlamento francês tem agora 48 horas para apresentar uma moção de censura ao Governo de Michel Barnier. A esquerda da Nova Frente Popular já anunciou que irá avançar com uma moção nesse sentido, devendo contar com o apoio da extrema-direita de Marine Le Pen, que também apresentará uma iniciativa nesse sentido. As moções deverão ser votadas até quinta-feira e, caso sejam aprovadas, levará à queda do Executivo de Michel Barnier, que tomou posse em setembro. Isso significa que o conservador pode vir a tornar-se o primeiro-ministro com o Governo mais curto de sempre da história de França.
UM NOVO GOVERNO?
Se a moção de censura for aprovada, como tudo indica, todo o Governo cai e fica demissionário. O Presidente Emmanuel Macron será obrigado a nomear um novo primeiro-ministro para Matignon que terá de aguentar os destinos do país até que sejam realizadas novas eleições o que deverá acontecer até ao verão do próximo ano.
E O PRESIDENTE MACRON?
A bola está agora do lado do Eliseu. O Presidente Emmanuel Macron, cujo mandato termina em 2027 pode, de facto, nomear um novo primeiro-ministro, com novos ministros, mas a escolha de Michel Barnier, de centro-direita, demorou semanas e não foi um nome consensual. A Assembleia Nacional - semelhante ao Parlamento português - está dividida em três grandes blocos: os apoiantes de Macron, a extrema-direita União Nacional e a coligação de esquerda que inclui também os extremos. Encontrar um nome que agrade a todos deverá mostrar-se mais difícil. Em todo o caso, Barnier poderá manter-se como primeiro-ministro durante várias semanas enquanto decorrem negociações. No limite, Macron também pode atirar a toalha ao chão e demitir-se, provocando eleições presidenciais antecipadas.
O QUE ACONTECE À PROPOSTA DE ORÇAMENTO?
O texto fica sem efeito. Nesse caso, a França não tem orçamento e o Governo fica em gestão, com poderes limitados. Ou seja, a partir de 1 de janeiro, não autoridade legal para aumentar impostos ou subir o endividamento. Em teoria, poder-se-ia prever a formação de um novo Governo, a elaboração e a apresentação de uma nova proposta de lei orçamental até ao final do ano, mas é um cenário considerado irrealista.
TEREMOS UMA CRISE SEMELHANTE À GRÉCIA?
Tal não é esperado. A liquidez da dívida pública francesa em nada se compara à da Grécia nos anos de 2010. Mesmo assim, esta crise chega no pior momento para o país: o défice deverá este ano fixar-se acima dos 6% do PIB e a dívida continua a acumular-se seguindo uma trajetória oposta à generalidade dos países, sobretudo no sul da Europa. Mesmo assim, a agência S&P manteve o rating do país com perspetiva "estável", não esperando grandes sobressaltos mesmo sem orçamento do Estado para 2025.
Receios de nova crise desviam investidores para os EUA
Com uma pré-anunciada queda do Governo, a dívida e a bolsa de França voltam a estar sob pressão. Num ano que está a ser mais favorável para os EUA do que para a Europa, a crise da segunda maior economia da Zona Euro deverá repelir ainda mais.
Numa crise política que dura há seis meses, França passou a ser vista pelos mercados financeiros como mais arriscada do que Espanha, Portugal e até a Grécia - o que tem pesado e deverá continuar apesar sobre os custos de financiamento do país. Apesar de os analistas afastarem um contágio a toda a Zona Euro, avisam para uma fuga de capitais para os Estados Unidos.
"O Governo francês atravessa problemas na aprovação e, até que se dissipe o risco político atual, acreditamos que o melhor é manter-se à margem da dívida soberana francesa",recomenda a equipa de analistas do Bankinter, numa nota a que o Negócios teve acesso. "O ano está praticamente terminado. Com saldos avultados nos índices americanos (ca.+25%), não tanto na Europa (ca. +6%), seria conveniente uma pausa até que se realizem as medidas de [Donald] Trump, assim como os desenvolvimentos dos governos em França e Alemanha e as suas abordagens sobre a despesa pública".
"Isto poderá levar a reajustar carteiras (mais EUA vs. menos Europa) e adotar um 'esperar e ver' para reduzir riscos para o final do ano", antecipam os analistas do Bankinter, numa altura em que a eleição de Donald Trump para a Casa Branca tem dado um renovado ímpeto a Wall Street, contrastando com as crises políticas deste lado do Atlântico.
A 9 de junho, o Presidente francês, Emmanuel Macron, dissolveu a Assembleia Nacional no rescaldo das eleições europeias, nas quais a União Nacional (RN, na sigla em francês) de Marine Le Pen venceu com 31,5% dos votos - mais do dobro da coligação de Macron. As legislativas resultaram em sucessivas tentativas para formar Governo. O Presidente acabaria por chamar o conservador Michel Barnier a liderar aquele que agora pode ser o Executivo mais curto de sempre no país.
Em causa estão três processos legislativos diferentes que têm de ser aprovados até 1 de janeiro de 2025: o orçamento para a Segurança Social, uma correção do orçamento de 2024 para contabilizar as divergências face ao projeto inicial e o orçamento do governo central para 2025. Com o Parlamento dividido, só é possível ver aprovadas estas leis se a extrema-direita ou toda a esquerda se abstiverem. Barnier decidiu assim recorrer ao artigo 49.3, para se sobrepor à assembleia Os deputados têm, depois disso, 48 horas para apresentar uma moção de censura ao Governo, sendo que a esquerda da Nova Frente Popular vai avançar e deverá contar como apoio da extrema-direita.
Apesar do dia tumultuoso no Parlamento, na bolsa os receios acabaram por ser acalmados. O CAC 40, que chegou a cair mais de 1% durante a sessão, conseguiu inverter a tendência de negociação e fechar com uma valorização residual de 0,02%, com o luxo a compensar as perdas da banca Ainda assim, ficou abaixo do desempenho das principais praças europeias. Desde a apresentação do orçamento, o índice francês perde 4,3% - e cai 11% desde a dissolução do Parlamento.
Na dívida, o efeito foi mais notório. Em contraciclo com o alívio por toda a Zona Euro, os juros das obrigações soberanas francesas a dez anos, maturidade de referência, subiram 2,1 pontos-base para 2,912%. O "spread" face à Alemanha - um importante indicador de risco - alargou oito pontos -base (o mais elevado desde 13 de junho) para 88 pontos-base. Historicamente, o financiamento do Governo francês a 10 anos custa cerca de 50 pontos-base a mais do que o alemão. De acordo com estimativas da Bloomberg, este alargamento do diferencial penaliza o PIB em 0,5%.
'Ao contrário do que aconteceu quando Macron convocou eleições antecipadas em junho, o recente 'sell-off no mercado obrigacionista (subida do 'spread' face à Alemanha) tem estado contido a França Isto faz sentido pois os problemas orçamentais são idiossincráticos a França e não afetam os fundamentais de outros Estados-membros", diz Daniel Kral, economista-chefe da Oxford Economics sobre um risco de contágio. "França está numa posição muito diferente à da Grécia [durante a crise das dívidas soberanas]. Tem um mercado obrigacionista profundo e líquido e a procura em recentes leilões de dívida foi forte. Os mercados exigem simplesmente agora um prémio de risco maior", remata.
Até que se dissipe o risco político atual, acreditamos que o melhor é manter-se à margem da dívida soberana francesa.
Equipa de analistas
Bankinter
88
"SPREAD"
A dívida de França tinha historicamente um "spread" de 50 pontos-base face à Alemanha. O diferencial alargou para 88 pontos-base.
IMPACTO
Mercados refletem receios desde as eleições francesas
A dissolução da Assembleia Nacional francesa após a subida da extrema-direita em França deu o pontapé de saída a um período de incerteza que se tem refletido no sentimento dos investidores.
FRANÇA ULTRAPASSA GRÉCIA
"Yield" das obrigações a 10 anos
Os juros franceses ultrapassaram, na semana passada, os pares da Grécia, enquanto o diferencial face à Alemanha se alarga. A "yield" das obrigações gaulesas a 10 anos fechou ontem próxima de 2,91%, mas mantém-se, ainda assim, abaixo dos níveis atingidos em junho, quando negociou acima de 3,5%.
BOLSA PERDE 11% DESDE JUNHO
Evolução do índice CAC 40, em pontos
A crise política em França agravou-se em junho e, desde então, a bolsa francesa tem vindo a desvalorizar. O índice de referência CAC- -40 acumula uma perda de 11%, sendo que na última sessão conseguiu ficar na linha d'água com as subidas do luxo a compensarem as fortes perdas do setor financeiro.
Fonte: Bloomberg
Empresas portuguesas tremem com ventos de incerteza em Paris
Instabilidade e imprevisibilidade são a receita para um cocktail negativo para o investimento e consumo, e, por arrasto, para a balança comercial.
Com a situação política em França a agravar-se a cada minuto, a economia francesa deverá ressentir-se e Portugal pode sofrer por tabela, temem a Confederação Empresarial de Portugal (CIP) e a Associação Empresarial Portuguesa (AEP).
Desde logo porque França é o segundo destino das exportações portuguesas, sendo ultrapassado apenas por Espanha: em 2023, a economia gaulesa comprou bens no valor de mais de 10 mil milhões de euros às empresas portuguesas, que em troca importaram 7,3 mil milhões. O excedente, favorável a Portugal, alcançou os 2,8 mil milhões. Entre os setores mais representados nas vendas estão os dos veículos e material de transporte (16,6% do total), metais (12,9%) e máquinas e aparelhos (12%).
"Uma quebra da confiança das famílias e empresas em França poderá afetar negativamente a balança comercial", diz o presidente do Conselho de Administração da AEP ao Negócios. Luís Miguel Ribeiro recorda que um aperto de financiamento em França "pode influenciar negativamente uma elevada diversidade de setores, desde a agricultura, a indústria transformadora ou o turismo, entre outros".
Um sentimento que afeta também a diáspora em França, que conta com inúmeros peque - nos negócios: "Os empresários da diáspora já estão a sentir a crise e, além disso, as grandes empresas francesas estão também elas a sentir dificuldades. Em muitas delas trabalham muitos portugueses", manifesta Luís Miguel Ribeiro.
A CIP também vê "motivos para sérias preocupações" perante a possibilidade de um "impasse político de consequências imprevisíveis", escreve fonte oficial da Confederação. "Um cenário provável será uma reação imediata dos mercados, com os investidores a venderem títulos da dívida pública francesa, e um aumento dramático do custo do financiamento dessa dívida", continua a CIP, adivinhando que em caso de urgência, "as instituições europeias não teriam capacidade de responder a uma rutura da segunda maior economia europeia, como fizeram no passado com a Irlanda, Portugal e Grécia". Seria um cenário sombrio: "as consequências alastrariam rapidamente à economia real, fazendo mergulhar a França numa severa crise", o que "afetaria incontornavelmente as empresas portuguesas. A generalidade dos setores industriais portugueses seria afetada", alerta a CIP.
As grandes empresas francesas estão a sentir dificuldades. Em muitas delas trabalham portugueses. Luís Miguel Ribeiro - Presidente da AEP
As instituições europeias não teriam capacidade de responder a uma rutura da segunda maior economia europeia - CIP, Fonte oficial.