O desafio: como vão as redes acompanhar estes aumentos?A pergunta sobre o que veio primeiro, se o ovo ou a galinha, não tem resposta ou, se tem, nunca será consensual. Haverá sempre quem ache que primeiro veio o ovo e outros que afirmam que foi a galinha. Mas, enquanto metáfora, este dilema ancestral pode ser aplicado a muitas situações, e a transição energética é uma delas, principalmente quando se fala no impacto que todo este megaprocesso de descarbonização da economia e da sociedade vai ter nas redes de distribuição de eletricidade.
É que a transição energética tem, pelo menos, duas vertentes. Uma delas impõe a instalação de mais painéis solares e parques eólicos que, por terem o sol e o vento como fonte de energia, vão ter uma produção intermitente o que implica alterar a forma como se gerem as redes. A outra é a descarbonização do que já existe e é alimentado a combustíveis fósseis — edifícios, indústrias e transportes — e que tem como objetivo substituí-los pela eletricidade renovável dos painéis solares, das eólicas e das barragens, o que obriga a ter redes mais robustas — porque elas terão de transportar mais energia — mas também mais redes, porque terão de chegar a outros pontos do país onde o consumo elétrico não era tão intensivo.
Sines é um bom exemplo. Pelas contas do agora ex-presidente da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), Filipe Costa, os projetos de descarbonização em curso nesta região até 2030 — tanto nas indústrias existentes como para novas unidades — vão precisar de 30 TWh de eletricidade, ou seja, mais de metade dos 50,7 terawatt hora (TWh) consumidos em todo o país em 2023, segundo dados da Redes Energéticas Nacionais (REN). Só para produzir hidrogénio verde contam-se cinco projetos: o H2 da Galp para descarbonizar a refinaria; o GreenH2Atlantic da EDP e da Galp a construir na antiga central a carvão; o H2 Sines da Engie/Shell; o MadoquaPower2X e o NGreen Hydrogen Sines, que precisa de produzir hidrogénio para alimentar a fábrica de e-metanol, um combustível verde. Há depois outros investimentos que não são de energia, mas que consomem muita, por exemplo, os centros de dados.
“E isto são só alguns dos principais projetos que temos num dos mais de 300 municípios do país”, repara Filipe Costa. Há outras zonas, como Setúbal, para onde estão previstos projetos “eletrointensivos a eletricidade verde”, como as fábricas de hidróxido de lítio para a produção de baterias para carros elétricos; das baterias e dos precursores e cátodos dessas baterias. Ou seja, pelas contas do anterior responsável da AICEP, aos 30 TWh dos projetos de Sines há que juntar cerca de 20 TWh dos investimentos noutros pontos do país, o que significa que, em 2030, o consumo de eletricidade em Portugal pode mesmo duplicar.
É aqui que entra a história do ovo e da galinha — não, não estava esquecida. A expressão foi usada por João Conceição, administrador da REN, no debate promovido pela E-Redes esta semana sob o tema “Os desafios da transição energética para a rede de distribuição”: constrói-se primeiro a rede, sem haver ainda o consumo, ou espera-se que o consumo aumente para se reforçar a infraestrutura?
O ideal, diz, “é irem as duas a par e passo, mas o paralelismo perfeito é impossível e a haver algum que avance, são as redes”, repara. Mas, acrescenta, “é preciso haver razoabilidade. A rede não pode duplicar e o país não pode ser um papel quadriculado ou milimétrico” porque estes investimentos “vão à tarifa” — como se diz na gíria do sector — e são pagos pelos consumidores na conta da luz. Além disso, a decisão não é só da REN ou da E-Redes. “Quanto mais investimentos, melhores resultados temos, mas os operadores de rede têm a sua capacidade de decisão escrutinada pelo Governo e pelo regulador”, acrescenta João Conceição.
QUE SOLUÇÕES
“O que precisamos é de um maior planeamento das redes de distribuição em função das áreas de localização empresarial e disponibilidade da E-Redes e da REN para investirem nas zonas de grande procura”, considera Filipe Costa, também ele presente na conferência. Porque, diz o presidente da Associação Portuguesa de Energias Renováveis (Apren), Pedro Amaral Jorge, ter as redes prontas é essencial para atrair estes projetos para o país, porque, “se nos atrasamos a captá-los, perdemos a vantagem competitiva que temos nos recursos energéticos”, ou seja, os 70% de eletricidade proveniente de fontes renováveis.
Outra solução passa por ter um sistema mais flexível, sugeriu Savannah Altvater, chefe da equipa de distribuição da Eurelectric, a associação europeia da indústria elétrica. Por exemplo, diz, os operadores da rede de distribuição devem poder “fazer o curtailment”, ou seja, reduzir ou interromper a produção em algumas centrais se elas estiverem a injetar mais eletricidade na rede do que o consumo naquele momento. Ou reduzir ou interromper o consumo de uma grande unidade fabril, por exemplo.
Mas a solução mais imediata é “usar os ativos existentes de forma mais eficiente, recorrendo a tecnologia e a inteligência artificial”, acrescenta Savannah Altvater.
Juntamente com Zsuzsa Cseko, consultora sénior da equipa de distribuição da mesma associação, apresentaram no mesmo encontro da E-Redes, um estudo sobre as necessidades de investimento nas redes de eletricidade perante os objetivos da transição energética. E os números “assustam”, diz Savannah: de acordo com o estudo, a Europa a 27, mais a Noruega, precisa de investir €67 mil milhões por ano entre 2025 e 2050 para atingir os objetivos propostos.